DE BURGOS A SAN SEBASTIAN/ DONOSTIA
Depois de Burgos, no caminho nosso para o País dos Cátaros, o destino é San Sebastian. Deixamos as margens de Castela, que é muito mais um grande cão magro estendido ao sol do que o leão de pé da bandeira castelhana. É triste esta paisagem de terras ressequidas de onde os velhos visigodos partiram à conquista do mundo lavrando os velhos e novos oceanos, passando a espada os povos cuja diferença se recusavam a compreender e, sobretudo, a aceitar. Triste pela cor sempre castanha de terra sem nada e pela ausência de montes que nos sirvam de guia. Os breves serros são apenas a espinha desse cão dormindo a sesta eterna. Impressionam-nos mais do que nos metem medo, mesmo quando passamos por um desfiladeiro perigoso.
Aqui compreendem-se bem os versos do sevilhano António Machado:
“ Castilla miserable, ayer dominadora,
Envuelta en sus andrajos desprecia cuanto ignora.
Espera, duerme o sueña? La sangre derramada
Recuerda, cuando tuvo la fiebre de la espada?”
A viagem é rápida porque, até Vitória, pouco há que preencha o nosso olhar a não ser aquela secura repetida.
De Vitória recordo o cinzento das casas e das ruas, e o nevoeiro cheio de fumo daquela viagem dos meus quinze anos. Não é nesta cidade que da auto-estrada nos surge incaracterística, no portão de entrada no País Basco, que quero parar.
Se não começássemos a ver os montes verdes da terra basca, os nomes escritos nas placas da auto-estrada ali estão para nos dizer que estamos já noutro país. O castelhano deixa de ser a linguagem absoluta e partilha o espaço com o basco. Vitória/Gasteiz lê-se em todas as placas. O movimento nacionalista basco ostenta aí uma vitória, a da aceitação da língua basca, a mais antiga língua da Península Ibérica, remontando talvez a seis mil anos. É uma língua misteriosa de um povo tão antigo como misterioso e valente. Uma língua tão misteriosa que se assemelha ao japonês! A língua de um povo misterioso que não se sabe de onde veio para ocupar o extremo norte da Península Ibérica.
Os bascos sobreviveram ao Império Romano, sobreviveram aos visigodos, derrotaram estrondosamente o exército de Carlos Magno no desfiladeiro de Roncesvales, foram os grandes pilotos que guiaram portugueses e castelhanos no desbravar dos oceanos. Hoje, continuam uma luta, tantas vezes cruel, pela sua identidade, sobrevivendo à assimilação castelhana.
Esse povo valente e único tem a nossa admiração.
Mas passamos ao lado de Vitória, porque o nosso destino é a bela San Sebastian/Donostia, a praça forte do movimento nacionalista basco, para o qual os portugueses são objecto de admiração, a jóia do País Basco.
Chegamos a San Sebastian/Donostia ao cair da tarde, e um feliz engano da agência de viagens levou-nos para um hotel diferente do que nos estava destinado, um hotel que se ergue no alto do Monte Igueldo e de onde a cidade e concha de San Sebastian, vigiada pela Ilha de Santa Clara, nos deslumbram com a sua beleza única. Poucos lugares há em que os três elementos, a terra, a água e o ar se tenham reunido em tão grande harmonia para que possamos dizer: é aqui que desejamos viver. Do hotel, a nossa vista é dominada pela concha suave e pelo velho oceano. E pelos barcos que se recolhem para o lugar de repouso, para o ventre tranquilo da grande mãe.
À noite, a festa das luzes da cidade vista do Monte Igueldo embebeda-nos mais do que o alvoroço espanhol das ruas estreitas e muito antigas.
Ficaríamos aqui por longos anos. Mas espera-nos o nosso destino: o País dos Cátaros