blog filosófico, cultural e político
Domingo, 27 de Novembro de 2005
A VERDADE
A verdade está nas roeduras
da traça e das toupeiras,
da poeira que sai das cómodas bafientas
e nas crostas dos queijos bem curados.
A verdade é a sedimentação, a estagnação,
não a logorreia nojenta dos dialéticos.
É uma teia de aranha, pode durar,
não a destruam com a escova.
É uma burla de escoliatas a ideia de que tudo se move,
a ideia que depois de um princípio vem um depois
que há água por todo o lado.Saudemos
os ineptos que não embarcam. Estaremos melhor
sem eles, estaremos também pior, mas
respiraremos com alívio.
EUGENIO MONTALE-Cadernos dos quatro anos.
tradução de Henrique Dória
Sábado, 26 de Novembro de 2005
LA VERITÀ
La verità è nei rosicchiamenti
delle tarme e dei topi
nelle polvere ch´esce da cassettoni amuffiti
e nelle croste dei "grana" stagionati.
La verità è la sedimentazione, il ristagno
non la logorrea schifa dei dialettici.
È una tela di ragno, può durare,
non distruggetela con la scopa.
È beffa di scoliasti l´idea che tutto si muova,
l´idea che dopo in prima viene un dopo
fa acqua da tutte le parti. Salutiamo
gli inetti che no s´imbarcano. Si starà meglio
senza di loro, si starà anche peggio
ma si tirerà il fiato.
EUGENIO MONTALE-Quaderno di quattro anni
Quarta-feira, 23 de Novembro de 2005
Pensamento Impenetrável
Dizem os cientistas que o átomo que eu respiro agora poderá ter saído da boca de Júlio César. Certamente que está aqui a razão da impenetrabilidade essencial do coglomerado que é o nosso pensamento.
E ainda bem que a sua essência é impenetrável, porque é essa impenetrabilidade que nos permite sermos nós próprios, mesmo que partilhemos o nosso mundo com os outros.
Se fosse possível a outro apropriar-se do meu pensamento, eu deixaria de existir.
Esta é uma das razões por que a ideia da existência de Deus me é difícil de aceitar. Como poderia um Ser que, supostamente, nos criou livres, apropriar-se de nós a cada instante?
Domingo, 20 de Novembro de 2005
PIETER BRUEGEL, O VELHO
OUTONO
Talvez nunca a ternura fosse tanta
Como entre os montes amadurecidos
E quando as casas se elevam
Entre o ouro e o fumo da tarde.
Silêncio que parece vir do lento
Passado,
Vozes que se dão em resignada melancolia
E tomam a forma dos frutos
Vinho e sombra que apagam o mar
Nas árvores
Onde não tardará o abandono
Memória do que somos.
Repousam sobre a noite os grous
Enquanto as cidades crescem à nossa volta
Contra o sul vencido.
Vento, ramo e sombra que caem
Sobre as janelas ardentes:
Lá onde a púrpura se reclina
Sobre a água e a beleza
A verdade começa a surgir da espuma.
HENRIQUE DÓRIA- Escadas de Incêndio
Sábado, 19 de Novembro de 2005
OS DEMÓNIOS DA FRANÇA
Durante séculos, a Europa, tendo nos países da linha da frente a França, andou a invocar os seus demónios.Pensava que os demónios dormiam. Mas, como resultado que era da civilização judaico-cristã, deveria saber que os demónios não dormem. E eles aí estão. A destruir hospitais, creches, casas, montras, automóveis pessoas.
Durante séculos aquilo que a França e outros países europeus procuraram em África foram as matérias primas. Do resto, dos Homens, só os procuraram enquanto instrumento para explorarem as matérias primas. Os que não serviam ou não eram necessários como instrumentos eram deixados no seu primitivismo tribal.
Mas a História não pára, mesmo para as tribos africanas. E a aspiração ao bem-estar e à felicidade ( que nunca existiu para o Homem no estado tribal, ao contrário do que muitos afirmam) levou a que, em vagas sucessivas, invadissem desesperadamente a Europa.
A França tem-nos utilizado como mão de obra barata, acantonando-os em guetos. Mas, como nas lâmpadas dos contos árabes, os demónios um dia saltam e espalham a destruição.
É o preço que a Europa, em particular a França, está a pagar pela miséria em que a exploração colonial deixou os africanos, à margem do desenvolvimento económico, à margem da instrução, em estado tribal.
São as tribos africanas que milenarmente se destruíam, a destruírem agora os europeus que os exploraram. Como demónios.
Domingo, 13 de Novembro de 2005
LEMBRANÇA DO AZUL
Há muito que o havia perdido
por isso as palavras que ficaram
dentro do seu quarto
eram agora capitéis decepados
que todos gostavam de escarnecer.
Só as suas mãos de criança
recordavam
com alegria o azul ausente,
mãos mais frágeis que o rumor das coisas
frente ao vento,
mãos habituadas à noite
e à nostalgia
que só o branco sabe iluminar.
HENRIQUE DÓRIA-Escadas de Incêndio
O BOM POVO PORTUGUÊS
Eduardo Prado Coelho acaba de escrever no Público um notável artigo sobre o carácter da generaldidade dos portugueses, artigo esse que o meu querido amigo Rui Mendes fez o favor de me enviar. Trata-se de um artigo notável porque notavelmente lúcido, que enfrenta a verdade e despresa o politicamente correcto.
Já escrevi no Odisseus que a classe política não é grande espiga,
mas o país é muito pior.O rei D. Carlos falava disto como A Choldra, e tinha
razão. Não que ele fosse grande rei, mas o país era bem mais pequeno do
que ele, como muito bem percebeu Raul Brandão nas suas Memórias.
É bom que haja alguém com a coragem de o dizer. E, já que o povo gosta tanto de ser roubado, como o provou nas recentes eleições autárquicas, talvez também goste de ser insultado - ou, melhor, ser chamado pelo que é.
Terça-feira, 1 de Novembro de 2005
MA VIE
Tu t´en vas sans moi, ma vie,
Tu roules,
Et moi j´attends encore de faire un pas.
Tu portes allieurs la bataille,
Tu me désertes ainsi,
Je ne t´ai jamais suivie.
Je ne vois pas claire dans tes offres,
Le petit peu que je veux, jamais tu ne l´apportes.
A cause de ce manque, j´aspire à tant,
A tant de choses, à presque l´infinit...
A cause de ce peu qui manque, que jamais tu n´apportes.
HENRI MICHAUX