blog filosófico, cultural e político
Domingo, 29 de Janeiro de 2006
LÁ ONDE A ÁGUA INSONE
Lá onde a água insone
faz a terra negra clarear
logo que a noite se perdeu
levantei tranquilo
a fina colcha do mar
para na minha face esquerda
contemplar
a cruz ocre
que a areia do tempo nela ergueu.
HENRIQUE DÓRIA (poema escrito ontem, de manhã)
Sábado, 28 de Janeiro de 2006
SALVAÇÃO
Devemos salvar-nos ou apenas conhecer-nos a nós mesmos?
Penso que conhecermo-nos apenas a nós mesmos é limitarmo-nos no tempo e no espaço.A salvação é o grande desejo do Homem. Alguns desejam a salvação como uma outra vida, depois da morte. Para mim, a salvação é apenas o prolongamento no tempo da única vida que nos foi dada, na justa medida em que entregámos essa vida ao outro, quer pelo amor, quer pela sabedoria, quer pela beleza.
HENRIQUE DÓRIA-Fragmentos
Quarta-feira, 25 de Janeiro de 2006
ZÉ POVINHO E EUROPA
Domingo, 22 de Janeiro de 2006
DESDIZENDO
Miguel Esteves Cardoso, outrora celebrado analista, comentador e político monárquico, que passou por um período de apagão, regressou recentemente às lides jornalísticas com página semanal nesse pasquim intitulado EXPRESSO, que ainda não consegui deixar de ler por razões que não consigo descortinar.
É a ele que, por simplicidade e, vamos lá, uma certa ternura, chamarei de D. Miguelito, irei desdizer nesta primeira crónica.
O D. Miguelito é um rapaz contraditório como o rei de que herdou o nome.O rei D. Miguel afirmava-se católico, mas isso não impedia que as suas preferências sexuais fossem dirigidas não para a legítima esposa mas para uma serva anã, negra.
Nacionalista, lutador tremendo contra a adesão de Portugal ao euro, o D. Miguelito defende regiamente o princípio de que só o que é nacional é bom, incluindo as leis que regulam os galheteiros.
Daí que qualquer lei, mesmo com pouca importância, da Comissão Europeia, ponha o nosso D. Miguelito com os azeites.
E é com a lança brilhando de azeite que se atira, como o hidalgo D. Quijote contra os moinhos de vento, contra a Comissão Europeia, defendendo a sua dama de vidro, ou seja, os galheteiros dos restaurantes.
Não importa que muitos restaurantes espanhóis, onde os portugueses algumas vezes são forçados a comer, misturem óleo de avião com azeite, ou que muitos restaurantes portugueses baptizem o galheteiro com meio por meio do óleo de amendoim mais rasca do mercado.
Isso é uma realidade que para o nosso D. Miguelito não tem importância. O que interessa é defender o galheteiro, essa instituição nacional que tantas vezes cheia de sarro alguns restaurantes, para já não dizer tascas, apresentavam na mesa dos clientes.
Para o D. Miguelito, como bom português que é, o que não mata engorda. Pelo que, galheteiro acima de todos.
Os fiscais portugueses nunca receberão uns cobres ou uns bacalhaus de borla para fecharem os olhos ao óleo de amendoim. São portugueses, são bons. E tudo o que vem da Comissão Europeia é mau. Nem que seja para nos defender das aldrabices, e não impeça ninguém, incluindo os D. Miguelitos que por aí abundam, de usarem os galheteiros para servirem o bom azeite nacional às visitas das suas nobres casas.
Ai D. Miguelito, D. Miguelito, estamos em tempo de globalização! E, mesmo não parecendo, há algumas coisas que vêm da Comissão Europeia que nos defendem melhor que nós nos defendemos a nós mesmos.
Por mim, prefiro que os portugueses tenham nos restaurantes ou nas tascas azeite puro a galheteiro sebento.
Pedindo desculpa pela ousadia, D. Miguelito, aqui vai uma sugestão: certo nacionalismo ultramontano e monárquico já cheira a ranço, como a rainha de Inglaterra.Lave-se desse ranço com o nacionalíssimo, passe a publicidade, sabonete Patti.
Sábado, 14 de Janeiro de 2006
CAMINHAMOS SEMPRE NA ORLA-DO-ABISMO
1.
Caminhamos sempre na orla-do-abismo.
Sorte não olharmos
Para os nossos pés-
Quebrar-se-iam logo os anos-luz.
2.
Andamos ao vento à urze
Ao fogo-fátuo do passado
À neve da morte-
É o que nos coube em sorte
Neste delírio-alado.
3.
Até ao dia em que estrelas-de-chumbo
Descerão as escadas-do-céu
Para beber o mundo.
HENRIQUE DÓRIA-Mar de Bronze
Domingo, 8 de Janeiro de 2006
SANTOS
Santos, para mim, são os apaixonados dos homens, e não os epilépticos de Deus.
Francisco de Assis foi santo, o Mahatma foi santo. Não o foram, porém, Teresa de Ávila e João da Cruz.
Estes salvaram-se só pela poesia. Que é também, com a santidade, um modo, embora menor, de salvação.
HENRIQUE DÓRIA - Fragmentos
Quarta-feira, 4 de Janeiro de 2006
A BALANÇO DO ANO
Portugal está a passar um dos momentos difíceis da sua história. Tudo aquilo que se consideravam direitos adquiridos está agora posto em causa porque as dificuldades orçamentais são crescentes, desde as do Orçamento Geral do Estado às do Orçamento da Segurança Social.
Perante a crise, o governo de Sócrates faz o que faria qualquer governo de direita ou centro-direita: põe as classes médias e baixas a pagar a crise.
Na verdade, crise não existe para a banca, nem para as seguradoras, nem para a grande distribuição.
Estas continuam, através dos mais variados expedientes, a fugir ao fisco.
Quem paga é o mexilhão, que tem de vender os anéis para que o fisco lhe não corte os dedos. Agora com a ameaça, de duvidosa legitimidade constitucional, e até com eventual relevância criminal, de ver o seu nome posto na praça pública como caloteiro.
Entretanto, os lucros da banca, das seguradoras e da grande distribuição ( os declarados, obviamente) continuam a subir escandalosamente.
Portugal continua a ser um país de cada vez maiores desigualdades, um país de cada vez menos portugueses.
Agora que se aproximam as eleições presidenciais, tudo está preparado para que se faça o Bloco Central, mas num novo modelo: Cavaco na Presidência e Sócrates no governo. Parece a ambos que, assim, há legitimidade democrática acrescida para fazerem os pobres pagar a crise.
É a esta luz, essencialmente, que deve ser lida a escolha de Mário Soares para candidato do Partido Socialista à Presidência da República e o pedido de desistência dos restantes candidatos de esquerda feito por Jorge Coelho.
Porque, com Manuel Alegre, ou mesmo Mário Soares, na Presidência, Sócrates não teria a legitimidade aparente, nem o incentivo presidencial para forçar os remediados e os pobres a serem os únicos a pagar a crise, como o está a fazer.