Mais tarde, estudando a influência da civilização muçulmana na civilização ocidental, apercebi-me de como a civilização ocidental recebeu, através da Occitânia, a cultura muçulmana do Al-Andaluz e a transmitiu a toda a Europa.
O islamismo e o gnosticismo cátaro tinham uma essência comum: para ambas as religiões existia uma separação radical entre o homem e a divindade, uma separação radical que Kierkgaard designou de “uma diferença qualitativa infinita” entre o homem e Deus.
Esta proximidade da essência de ambas as religiões, e a proximidade geográfica entre a Occitânia e a brilhante civilização árabe do Al-Andaluz iria produzir inevitáveis consequências: as trocas comerciais foram acompanhadas de trocas culturais.
Muito antes de Dante e de Petrarca já o Ocidente tinha uma notável produção literária, particularmente poética.
Ora a poesia ocidental da Idade Média nasceu no sul de França, na Occitânia, na Aquitânia e na Provença, as regiões da actual França mais próxima do Al-Andaluz. Um razoável número de occitanos, aquitanos e provençais falava e escrevia fluentemente o árabe. E foi através do contacto com os grandes poetas místicos al Hlaj, al Gazzali e Sohrawardi que os trovadores da Provença beberam o amor cortês, que é o tema essencial do seu lirismo.
Escrevia al Hallaj:
“ Matando-me me fareis viver, pois para mim viver é morrer e morrer é viver.”
Conhecendo nós a tragédia cátara compreenderemos melhor o sentido histórico destas palavras. Mas compreenderemos também a origem de expressões como “morrer de amor” e da “coita de amor” dos poetas provençais. Cantigas de amor, cantigas de amigo, cantigas de escárnio e maldizer também forma bebidas pelos poetas occitanos do lirismo árabe.
Como bem perceberam os mais lúcidos estudiosos da poesia occitana, nomeadamente DENIS DE ROUGEMONT no seu fabuloso O AMOR E O OCIDENTE, o amor místico está subjacente á poesia trovadoresca. A amada dos poemas occitanos é Deus muito mais do que a mulher.A expressão “midous” corrente nesses poemas significa “meu senhor” e não “minha senhora”.
Os temas da poesia occitana eram também os temas da poesia árabe: o amor, a morte, o sofrimento de amor, a contemplação da natureza, a solidão, a meditação.
Foi uma retórica cifrada, altamente requintada nos seus processos, cheia de simbolismo e ambiguidades que os poetas místicos árabes transmitiram aos ocidentais da Occitânia.
As própria técnicas literárias forma bebidas dos árabes. Guillaume de Poitiers, o primeiro poeta trovador, reproduziu a técnica árabe do zadjal em cinco dos seus onze poemas que nos restam. O Zdjal, forma poética dominante na Pérsia de então, é um poema curto, de entre dez a quinze estâncias, de rima única, aa,xa,xa,xa,etc.
Outra técnica literária bebida dos árabes pelos occitanos e provençais e foi a repetição de versos, particularmente no fim de cada estância, dando à poesia uma particular musicalidade.
E essa busca incessante da musicalidade na poesia árabe levou à adopção da rima, que foi outro dos grandes legados árabes à poesia ocidental.
A rima já existia entre os latinos. Mas a língua latina possuía, como a grega, suficiente musicalidade para evitar o esforço da rima. Esta foi um acrescento de musicalidade que começou a ser praticada no século III, particularmente em alguns hinos católicos. Mas só no século XI ela se vulgariza no ocidente por influência da poesia árabe, que era rimada. A maior obra poética árabe, o enorme poema épico de Rumi intitulado “Mathnawi”, é toda rimada, de uma rima tão encantatória que faz tornar o poema em melodia, quando recitado, devendo o seu título ao nome de uma composição poética.
Deu-se por volta do ano mil o esplendor da civilização árabe do Al-Andaluz. E foi por volta do ano mil que o catarismo começou a ganhar força naquilo que é a actual Catalunha, na Provença e, sobretudo, na Occitânia.
A História tem continuidades e continuidades que é apaixonante conhecer.
Tanto bastou para surgir em mim o desejo de visitar e conhecer, mesmo que superficialmente, a Occitânia.