A VIAGEM E A CIDADE PERFEITA
DE APOLÓNIO DE TIANA A SRI AUROBINDO
PROPOSTA PARA O PRÓXIMO DECÉNIO
Amargo saber, o que nos dá a viagem!
O mundo, monótono e pequeno, hoje,
Ontem, amanhã, sempre, faz-nos ver a nossa imagem,
Um oásis de horror num deserto de tédio!
Talvez e nenhum outro lugar se falasse do homem e da sua vida sobre a terra como nestes versos altos e profundos de Charles Baudelaire.
Este mundo pequeno e monótono, este mundo imperfeito e de horror, pela presença constante do sofrimento e da morte, convida-nos à Viagem, para nos superarmos a nós mesmos e nos transformarmos e à Terra que habitamos num lugar de sabedoria, força e beleza.
Pensava Blaise Pascal, o solitário de Port Royal, que a melhor viagem que podemos efectuar é a que fazemos dentro de nós mesmos.
Porém, o homem é um ser que sofre porque não pode conceber-se a si próprio sem os outros. Daí que a viagem ao encontros dos outros seja essencial para que o homem se erga como homem.
Peregrino é aquele que viaja em busca da iluminação e da revelação, ao encontro do mestre escolhido ou da cidade perfeita. O peregrino caminha com desprendimento em relação ao presente, em busca do fim superior que o move. Com humildade e despojamento: por isso leva o bastão que o apoia e lhe proporciona a possibilidade de se superar a si mesmo, às suas próprias fraquezas, na viajem que realiza. E o capuz, que não só o protege das intempéries, mas lhe lembra permanentemente quão alto é o seu desígnio.
Houve dois homens, dois peregrinos perfeitos, dois seres justos e luminosos que aqui quero dar como guias nesta viagem: Apolónio de Tiana e Sri Aurobindo.
O primeiro assistiu à aurora da era dos peixes, aquele em que se acreditou, como em nenhuma outra antes, na vinda de um Messias, de um Salvador da Humanidade. Cristo aceitou essa condição de Messias. E também Maomé a aceitou, cerca de setecentos anos depois de Cristo.
Apolónio de Tiana chegou a ser considerado, por alguns, como Messias, condição que ele, como ser apenas humano, recusou.
Em vez de se considerar um Messias, como simples peregrino sobre a Terra viajou dentro e fora de si mesmo. Procurou ser um homem em busca da perfeição a partir do seu eu. E procurou também transformar Roma, a cidade das cidades do seu tempo, senão numa cidade perfeita, pelo menos numa cidade onde o viver não fosse um permanente sofrimento.
Sri Aurobindo assistiu ao crepúsculo da era dos peixes, ao fim trágico de todas as crenças
Como Apolónio viajou não só em direcção ao eu perfeito, mas em direcção também à cidade perfeita. E esta, que ele idealizou, começou a ser construída após a sua morte pela sua companheira: chama-se Auroville. Situa-se na Índia, próximo de Pondicherry.
Enquanto eu lia no meu cérebro a palavra mágica Maldoror, todos saíram da sala de audiências, e o oficial de justiça teve de me lembrar - Vá, está tudo terminado.
Está tudo aterminado, repeti para mim mesmo.Maldoror.
Era a hora de voltar para o meu T0, no quinto andar esquerdo, de onde eu só conseguia ver a tristeza de um pequeno pedaço de céu. Estendi-me na cama e aí fiquei imóvel, sentindo-me já semi-morto a olhar o grande dorso branco do tecto.
Comecei então a rememorar o que me aconteceu naquele dia inacreditável.
Na verdade só via a estupidez, a insolência e o absurdo misturadas com o acaso no comportamento dos homens.
Eu nada tinha a ver com aquela discussão que dois tipos já tocados pelo álcool levavam no café, e da qual eu não recordo uma única palavra apesar de ter ocorrido na mesa ao lado da minha. Mas aqueles que pareciam amigos elevaram, subitamente, o já alto tom de voz e, consequência fatal, um deles pegou na caneca de cerveja e atirou-a em direcção à cara do outro. Este desviou-se, e a caneca foi embater-me no sítio onde os lábios se juntam, rasgando-me a carne. Levantei-me e dirigi-me para o desconhecido que me tinha atirado a caneca. Ele, porém, não esperou por mim. Ergue-se da cadeira e preparava-se para me socar quando eu lhe dei um pontapé nos tomates que o deixou prostrado. Mas não por muito tempo, pois, quando eu virava as costas para sair do café, ele veio atrás de mim, lançou as garras precisamente no sítio onde embatera o vidro grosso, e rasgou ainda mais as feridas, transformando-as em duas outras bocas que se elevavam para os meus olhos num esgar sangrento.
Ao meu lado estava uma pequena oliveira que só quem trabalhava no café sabia - mas eu também sabia - ser de plástico. Para dar mais verdade à oliveira, ela estava plantada num monte de terra cercado por pedras brutas de diversos tamanhos. Instintivamente, peguei numa dessas pedras e bati com ela na cabeça do agressor, concentrando no braço toda a minha raiva. O embate da pedra na cabeça foi de tal modo violento que o desconhecido caíu de imediato, ficando com as pernas flectidas e as mãos sobre os joelhos, como um cão adormecido. Na sua cabeça abrira-se uma outra boca aterradora, por onde saía um pedaço de cérebro como uma língua.
E o sangue escorria viscoso e suave dessa boca, a conduzir-me para o inferno.
HERBERTO HELDER- Do Mundo
Beleza ou ciência:uma nova maneira súbita
-os frutos unidos à sua árvore,
precipícios,
as mãos embriagadas.
E os animais aprofundam-se, encurvam-se os dias,
as pêras brilham,
o teu vestido é grande se te olho devagar.
O teu corpo transmite-se ao vestido.
Penso na glória do teu corpo.
E inclina-se a luz até os dias caírem dentro dos dias invisíveis.
A terra move-se sobre os lados, ensinas-me
o que não saberei nunca:
a água ronda.
Dentro de uma zona aberta com muita força:
música,
o exercício de uma palavra maior que as outras todas,
e a minha idade - ciência tão mortal onde és
absoluta.
PAUL CELAN- A Rosa de Ninguém
QUIMICAMENTE
Silêncio fundido como ouro, em
mãos
carbonizadas.
Grande, cinzenta,
forma-irmã
próxima como tudo o que se perdeu:
Todos os nomes, todos aqueles
nomes queimados
juntamente. Tanta
cinza por abençoar.Tanta
terra ganha
sobre
os leves, tão leves
anéis
da alma.
Grande.Cinzenta. Sem
escórias.
Tu, outrora.
Tu com a flor
pálida, mordida.
Tu na torrente de vinho.
(Não é verdade que também a nós
nos despediu este relógio?
Bom,
bom, como a tua palavra passando por aqui morreu.)
Silêncio, fundido como ouro, em
mãos carbonizadas,
carbonizadas.
Dedos, finos como fumo.Como coroas, coroas de ar
ao redor--
Grande.Cinzenta.Sem
rasto.
Ré-
gia.
SANDRO PENA-No Brando Rumor da Vida
As portas do mundo não sabem
que lá fora a chuva as procura.
As procura.As procura. Paciente
afasta-se, regressa. A luz
não sabe que há chuva. A chuva
não sabe que há luz. As portas,
as portas do mundo estão fechadas:
fechadas para a chuva,
fechadas para a luz.
IANIS RITSOS-Grades
O INSACIÁVEL
Insaciável a dar - algumas vezes, até, coisas
que não lhe pertenciam, - como aquela montanha, por exemplo,
cor de malva no crepúsculo, com árvores de esmeralda, gravada
em vapores doirados; ou a sombra da andorinha nas espigas,
ou a forquilha caída, à noite, frente à cancela do jardim,
ou cabelos da bela mulher no acto de dizer "não".
Quanto ás suas coisa - quais suas coisas?- - não ficava com nenhuma:
Mantinha-se do quanto dava. E quando, alguma vez,
já nada tinha, cerrava os olhos, esperando
inventar algo maior do que ele próprio, e dá-lo
Precisamente então, sentia que era aquele.
ANNA AKHMATOVA- Mistérios do Ofício
ÚLTIMO POEMA
Um, como trovão alarmado por alguém,
Com a respiração da vida irrompe na casa,
Ri-se, vibra perto da garganta,
E redemoinha, e aplaude.
Outro, nascendo no silêncio da meia-noite,
Não sei de onde vem furtivo até mim,
Olha do espelho vazio
E murmura algo severamente.
Também alguns são assim: em pleno dia,
Quase como que sem me ver,
Fluem do papel sem nada,
Como fonte pura no barranco.
E eis mais: o misterioso anda por aí -
Não é um som nem uma cor, não é uma cor nem um som,
Talha-se, muda-se, entrelaça-se,
Mas às mãos vivo não se entrega.
Mas este!... gota a gota bebeu o sangue
como na juventude uma rapariga má - o amor,
E, não me tendo dito uma única palavra,
De novo tornou o slêncio.
E não soube nunca de desastre mais cruel.
Foi-se, e dele alongaram-se as pégadas
Até uma extrema extremidade,
Se sem ele...eu morro.
EMILY DICKINSON
Há uma solidão do espaço
E do mar há solidão
Solidão da morte, mas
Alegres parecerão
Comparadas à mais funda
E polar intimidade
De uma alma diante de si própria -
A Finita Infinitude.
CAMILO PESSANHA- Clepsidra
INSCRIÇÃO
Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...
Ali ao lado do seu quarto
eu podia ouvir os seus sonhos
mesmo os mais silenciosos
sonhos diferentes de tudo quanto imaginava.
Umas vezes beijava
a boca de um cântaro
e o sabor da argila entrava
pela noite dentro.
Outras abria deslumbrado uma porta
junto ao mar
para onde davam as escadas de incêndio.
Outras ainda surgia devagar
com a lua em crescente
cortando-lhe a garganta
e fazendo correr um leve fio de sangue
em tudo que era estranho
nesta simplicidade.
HNERIQUE DÓRIA- Escadas de Incêndio
DE BURGOS A SAN SEBASTIAN/ DONOSTIA
Depois de Burgos, no caminho nosso para o País dos Cátaros, o destino é San Sebastian. Deixamos as margens de Castela, que é muito mais um grande cão magro estendido ao sol do que o leão de pé da bandeira castelhana. É triste esta paisagem de terras ressequidas de onde os velhos visigodos partiram à conquista do mundo lavrando os velhos e novos oceanos, passando a espada os povos cuja diferença se recusavam a compreender e, sobretudo, a aceitar. Triste pela cor sempre castanha de terra sem nada e pela ausência de montes que nos sirvam de guia. Os breves serros são apenas a espinha desse cão dormindo a sesta eterna. Impressionam-nos mais do que nos metem medo, mesmo quando passamos por um desfiladeiro perigoso.
Aqui compreendem-se bem os versos do sevilhano António Machado:
“ Castilla miserable, ayer dominadora,
Envuelta en sus andrajos desprecia cuanto ignora.
Espera, duerme o sueña? La sangre derramada
Recuerda, cuando tuvo la fiebre de la espada?”
A viagem é rápida porque, até Vitória, pouco há que preencha o nosso olhar a não ser aquela secura repetida.
De Vitória recordo o cinzento das casas e das ruas, e o nevoeiro cheio de fumo daquela viagem dos meus quinze anos. Não é nesta cidade que da auto-estrada nos surge incaracterística, no portão de entrada no País Basco, que quero parar.
Se não começássemos a ver os montes verdes da terra basca, os nomes escritos nas placas da auto-estrada ali estão para nos dizer que estamos já noutro país. O castelhano deixa de ser a linguagem absoluta e partilha o espaço com o basco. Vitória/Gasteiz lê-se em todas as placas. O movimento nacionalista basco ostenta aí uma vitória, a da aceitação da língua basca, a mais antiga língua da Península Ibérica, remontando talvez a seis mil anos. É uma língua misteriosa de um povo tão antigo como misterioso e valente. Uma língua tão misteriosa que se assemelha ao japonês! A língua de um povo misterioso que não se sabe de onde veio para ocupar o extremo norte da Península Ibérica.
Os bascos sobreviveram ao Império Romano, sobreviveram aos visigodos, derrotaram estrondosamente o exército de Carlos Magno no desfiladeiro de Roncesvales, foram os grandes pilotos que guiaram portugueses e castelhanos no desbravar dos oceanos. Hoje, continuam uma luta, tantas vezes cruel, pela sua identidade, sobrevivendo à assimilação castelhana.
Esse povo valente e único tem a nossa admiração.
Mas passamos ao lado de Vitória, porque o nosso destino é a bela San Sebastian/Donostia, a praça forte do movimento nacionalista basco, para o qual os portugueses são objecto de admiração, a jóia do País Basco.
Chegamos a San Sebastian/Donostia ao cair da tarde, e um feliz engano da agência de viagens levou-nos para um hotel diferente do que nos estava destinado, um hotel que se ergue no alto do Monte Igueldo e de onde a cidade e concha de San Sebastian, vigiada pela Ilha de Santa Clara, nos deslumbram com a sua beleza única. Poucos lugares há em que os três elementos, a terra, a água e o ar se tenham reunido em tão grande harmonia para que possamos dizer: é aqui que desejamos viver. Do hotel, a nossa vista é dominada pela concha suave e pelo velho oceano. E pelos barcos que se recolhem para o lugar de repouso, para o ventre tranquilo da grande mãe.
À noite, a festa das luzes da cidade vista do Monte Igueldo embebeda-nos mais do que o alvoroço espanhol das ruas estreitas e muito antigas.
Ficaríamos aqui por longos anos. Mas espera-nos o nosso destino: o País dos Cátaros