As estrelas construiram o meu corpo com o seu pó luminoso, e eu insuflo-lhe diariamente a alma transbordante.
Faço-o como um viciado:injecto a alma nas veias.
Levada pelo meu sangue ela, hóspede inquieta, dirige-se para o coração.Lançada pelo coração, filtrada pelo cérebro, volta para as veias ao encontro do corpo, seu irmão e seu vaso.
Assim as estrelas, através de mim e dos outros, criam constantemente a sua alma.
HENRIQUE DÓRIA-Viagem Para Uma Nebulosa
Haverá algo que possamos conhecer?
-perguntei à minha sombra rubra.
Para conhecer de que precisa
o teu cérebro
-de ser trespassado
pelo eterno arpão da Baleia Branca
ou apenas erguer o véu
que encobre a árvore
da ciência do bem e do mal?
Respondeu-me ao longe o machado perpétuo
do lenhador do tempo:
Tu que foste pó
e depois acácia
e tigre
e homem
só precisas de te lembrar
que de novo voltarás a ser pó
para teres algum conhecimento.
HENRIQUE DÓRIA
Ver Alexandra, o magnífico filme de Sokurov, é acreditar que o cinema ainda não morreu. Sokurov é bem o herdeiro de Tarkovsky, uma mistura de sonho e realidade, pintura e poesia.
É a alma russa a falar-nos. Da Rússia comunista, da era Gorbatchov/Ieltsin e, indirectamente, da Rússia de Putin.
Da Tchechénia, da Geórgia, e outras que aí virão.
O Ocidente ainda não percebeu a Rússia actual. Putin está a ensinar-lhe, pese a dificuldade da senhora Merkl em aprender.
A Rússia dos agentes da CIA Gorbathov e Ieltsin foi humilhada até à espinha pelo Ocidente. Essa humilhação chamou-se não só desarmamento unilateral mas também sofrimento e miséria generalisada.
Em Alexandra, Sokurov faz a pergunta: pátria, que pátria?
A dupla de agentes da CIA destruiu a Pátria Russa. O que o agente duplo Putin está a fazer é reconstruí-la. Dar-lhe dignidade.
O Ocidente humilhou a Rússia na fragmentação do império soviético, e, mais recentemente, nessa vergonha chamada Kosovo. Putin está a dizer-lhes: acabou-se: não aceitamos mais humilhações. E como um grande urso da Sibéria ergue-se sobre as patas traseiras e mostra as garras. Alexandra já está ultrapassado. Mostra a realidade da era Ieltsin e do início da herança de Putin. Este agente duplo ( e foi como agente duplo que alcançou o poder) optou definitivamente pela Avó Rússia.
Chegou a vez da senhora Merkl ser humilhada e aceitar fazer o papel de idiota ( com a devida vénia para Dostoievsky) dizendo que se a Geórgia quiser poderá aderir à NATO. Os tanques georgianos foram todos destruídos num abrir e fechar de olhos pelos tanques russos. Neles está a adesão da Geórgia à NATO.
O idiota que a CIA colocou à frente da Geórgia percebeu finalmente que os amigos da NATO de nada lhe valerão. Porque o próprio sistema americano ajudou o urso russo a erguer-se através dos fabulosos lucros da especulação petrolífera que, agora, já não são drenados para o Ocidente mas ajudam a que a Rússia se sinta, novamente, uma Grande Pátria.
Penso no teu sorriso
E no mar tranquilo abre-se uma pequena cova.
Antes dele
Eu estava triste a um canto
Do meu quarto
Pensava na sombra de onde só poderia nascer a própria
morte
Na grande onda invadindo as casas
Na serpente do meio dia.
Hoje basta-me pensar no teu sorriso
E o violino que acaricia o lençol
Ilumia-se e ergue-se
Frente à porta
Que se abre com tanta simplicidade.
O que é este resultado do ar que respiramos, da água que bebemos, dos alimentos que ingerimos, ou da luz em que tudo está suspenso?
Um número infinito de partes elementares a que chamamos matéria, ou a capacidade de unir todas as coisas, a que chamamos inteligência?
Separação do infinito através do mistério, como sustentava Anaximandro, ou ligação ao infinito através do amor, como ensinava Empédocles?
Ou, tão só, esta capacidade de diariamente nos suportarmos a nós próprios e aos outros?
HENRIQUE DÓRIA-Fragmentos