Ardem sobre o mar
dunas, árvores, noras adormecidas.
As ondas abriam a imagem dos pobres
e as crianças que todo o Outono choraram
dentro das conchas
derramam na areia
o seu indescernível sorriso.
Ao longe, alguém quis regressar
para o início da noite,
trazer consigo uma lâmpada,
estrelas no olhar.
Mas parece ter-se perdido
obcecado entre a dor
e o desejo das corças impacientes
- ele que parecia conhecer os caminhos
da floresta
ele que parecia dirigir-se para o norte
das caleches douradas.
Passam cardumes de pequenas luas
pela abóbada da solidão.
Cavalos erguem um turbilhão de nevoeiro,
cavalos com sinais humanos, cavalos sangrentos.
HENRIQUE DÓRIA- Círculo da Terra
Ficou historicamente demonstado que a comunismo foi uma fraude, uma fraude em que tantos embarcaram cheios de boas intenções e do mais cristão amor ao próximo.
Sempre estive convencido que o liberalismo era também uma fraude, e que como fraude tinha já sido desmascarado com a Grande Depressão.
Porém, o liberalismo, com a sua aparência benévola de respeito pelos outros e pela sua liberdade, na medida em que absolutizava o indivíduo, e colocava todo o poder económico, que é o essencial do poder na cidade, nas mãos e sob a vontade do indivíduo, não é mais do que o sancionar do poder do mais forte.
Sempre vocifereram os liberais contra a intervenção do Estado, como se fosse em si o mal que vinha estragar a saúde férrea e a acção para todos benévola da mão invisível.
Mas são agora os mais liberais dos liberais, a clique de Bush, que toma a medida mais antibeliberal que se pode tomar: a socialização dos prejuízos.
É claro que os lucros nunca não poderão, para os liberais, ser socialisados, nem sequer através dos impostos. Mas os prejuízos sim.
A mão invisível mostrou até que ponto vai a sua fraude: os pobres são forçados a pagar a crise que encheu de dinheiro os ricos que apostaram no enriquecimento através da corrupção.
E quando o barco do liberalismo corre o risco de se afundar, lá está a mão visível do Estado a dar a mão à mão invisível para que esta se salve.
Mas não desesperemos: os liberais continuarão a defender o liberalismo como se nada tivesse acontecido.
Pudera: eles continuam com as costas quentes!
Mas para aqueles que, em todo o mundo, vivem com sacrifício do seu tabalho, para esses aconteceu algo de muito importante: estão a pagar a factura da fraude americana.
Ontem à noite, duas hora a ouvir Schubert.Cada vez mais o compositor de que me sinto mais próximo, o mais amado.Nenhum outro compositor soube expressar através da música o drama da existência. Bach é excessivamente metafísico.Mozart tem normalmente uma despreocupação com a existência que me impressiona, apesar de ter escrito o D. Juan, obra que parece influenciada pela angústia de Kierkgaard, mesmo antes de haver Kierkgaard. E o fabuloso Requiem.Beethoven excessivamente heróico.
Schubert é desesperadamente humano.
Como nenhum outro tinha presente a consciência da morte.E de como poderia salvar-se através da arte.
Quando o pai, professor primário, lhe escreveu a aconselhá-lo a deixar a música e ser também professor primário, o que lhe permitiria pelo menos não passar fome, Schubert desabafou: "Pobre pai.Ele não percebe que a minha grande fome é outra."
Tinha acabado de escrever a VIAGEM DE INVERNO, esse cume da música para o mais belo instrumento que existe: a voz humana.
Escreveu sempre desesperadamente.E, no meio da escrita, teve a vida de um desesperado:álcool e sexo transbordantes.
Tudo isso para morrer cedo. Porque morrem cedo os que os deuses amam.
Talvez nunca a ternura fosse tanta
como entre os montes amadurecidos
e quando as casas se elevam
entre o ouro e o fumo da tarde.
Silêncio que parece vir do lento
passado,
vozes que se dão em resignada melancolia
e tomam a forma dos frutos,
vinho e sombra que apagam o mar
nas árvores
onde não tardará o abandono,
memória do que somos.
Repousam sobre a noite os grous
enquanto as cidades crescem à nossa volta
contra o sul vencido.
Vento, ramo e sombra que caem
sobre as janelas ardentes:
lá onde a púrpura se reclina
sobre a água e a beleza
a verdade começa a surgir da espuma.
HENRIQUE DÓRIA-Escadas de Incêndio