Dois dias são demasiado pouco para visitar Veneza. Mesmo a vôo de ave. Por isso tive de fazer uma escolha muito limitada para esses dois dias de visita a Veneza de que dispunha. E escolhi: S. Marcos, o Palácio Ducal, Escola Grande de S. Rocco, Lido, Academia. Passeio diurno e nocturno. E imergir no Carnaval que, naqueles dias, está por todo o lado.
Como fiquei em Mestre ( os hotéis de Veneza estavam todos esgotados) e a entrada na cidade está vedada ao trânsito de autocarros, tive de descer na Praça de Roma e ir a pé daí até S. Marcos, o que significa atravessar a pé toda a cidade.
Passeio admirável para descubrir quanto Veneza é tributária da herança bizantina e árabe, pelas suas ruas estreitas, onde, às vezes, mal cabem duas pessoas, pelos seus edifícios deslumbrantes onde o topo das janelas e das portas nos faz parecer que estamos face a mesquitas por todo lado.
Veneza é, sem dúvida, a cidade mais bela que conheci, muito mais bela mesmo do que a bela Bruges que, pelos seus canais, lhe é tão semelhante.
Tive a sorte de, neste tempo de invernia por toda a Europa, ter recebido a dádiva do sol de Veneza. Foi um banho de água e luz, luminosa água, luz aquosa, caminhando pelas ruas, viajando de vaporetto pelos canais.
S. Marcos é, sem dúvida, o centro espiritual de Veneza. Aquela praça frente ao mar, aquela Catedral onde se encontra concentrado todo o esplendor de Bizâncio! Apetece gritar: oh!cúpulas, oh! frontões, oh! mosaicos, oh! ícones! E ajoelhar perante tanta beleza.
Depois o Palácio Ducal, a espantosa exibição da magnificência do poder através do ouro e da beleza. Sentimo-nos esmagados pelo poder e pela beleza. Para mim, particularmente esmagado por aquele imenso Tintoretto, representando O PARAÍSO, que se encontra na Sala do Conselho Maior.
Tintoretto, mais ainda que Canaletto, foi o pintor de Veneza, pois deixou em Veneza o essencial da sua obra. A começar por este PARAÍSO.Tintoretto morreu pouco depois de o ter pintado. Em santidade, porque naquela beleza está a justificação de toda uma vida.
Mas Tintoretto está por todo o lado na Escola Grande de S. Rocco ( entre nós S. Roque). A Escola de S. Rocco era uma associação de beneficência semelhante à nossa Misericórdia.Fez um concurso para a decoração das suas salas, tendo saído vencedor o grande Tintoretto. Tive já a oportunidade de ver no Prado, há cerca de cinco anos, a maior mostra de Tintoretto apresentada até hoje, incluindo alguns quadros que se encontram em S. Rocco, em particular A ADORAÇÃO DOS PASTORES. Mas a beleza das pinturas em S. Rocco é ainda maior que no Prado, porque em S. Rocco estão no espaço para o qual foram concebidas.
Esta ADORAÇÃO DOS PASTORES é absolutamente invulgar, porque absolutamente humana, ao ponto de ter substituído o burrinho por um galo na representação do presépio.
O complexo monumental de S. Rocco faz-nos lembrar o lisboeta, e belísimo também, complexo monumental de S. Roque. Mas S. Rocco tem o Tintoretto que o torna único no
mundo.
Finalmente, a noite de Veneza, no primeiro dia. Os italianos dão-se ao luxo de desperdiçarem o supremo encanto que poderia ter a beleza nocturna de Veneza, deixando a cidade com uma iluminação tão má como a da minha aldeia nos anos 60.
Ver toda aquela beleza dos edifícios e dos canais bem iluminados na noite veneziana seria um encontro com o amor.
Com aquela pobre iluminação, foi um encontro com a melancolia.
Esta Itália que acabo de visitar pela primeira vez faz-me lembrar o verso de Camilo Pessanha: " Eu vi a luz em um país perdido".
Talvez não haja país no mundo onde a beleza artística seja tão grande como em Itália. Mas, para lá dessa beleza que às vezes nos exalta, outras nos faz chorar, outras nos esmaga, há um país moralmente degradado e degradante: a confusão, a sujidade, a ausência de simpatia com os estrangeiros, a falta de carácter dos italianos é a marca da Itália de hoje.
E, no entanto, a Itália possui uma elite intelectual que é, sem dúvida, do melhor que há no mundo actual.
Então porquê esta esquizofrenia nacional? Os intelectuais encontram-se longe do italiano médio, e são tudo menos os intelectuais orgânicos de que falava GRAMSCI? Ou, por parte da generalidade dos italianos, há uma recusa ostensiva do pensamento e da criação? Estou certo que é esta segunda hipótese a que se verifica. Pela generalidade dos italianos há uma recusa dos intelectuais e artistas, e uma atracção pelo medíocre, pelo vulgar, pelo aldrabão, pelo sujo, que fazem da Itália o que ela é hoje. Só assim, aliás, se consegue compreender a presença no poder dessa figura simultâneamente sinistra e baixa que é Berlusconi. O resultado do poder desse gigolo nacional italiano encontra-se na degradação do país que governa, nomeadamente pela currupção, pela "tangente": Só no último ano, a currupção e a tangente subiram, na Lombardia, principal base de apoio de Berlusconi e do seu governo, cerca de 200%.
Compreendi, através da prosa divina de CRISTINA CAMPO, como é possível alguém invulgarmente inteligente acreditar em Deus.
Quando Cristina Campo escreve:
" « Que eu jamais queira pedir-te amor» deveria ser o voto recíproco dos amantes",
eis onde está a crença em Deus que, nas palavras de Cristina Campo, não significa mais que o indizível, incompreensível Amor.
Mas, aqui, a cristã Cristina Campo, sentindo-se no mundo como num campo de concentração, pretende ultrapassar os ensinamentos de Cristo.
Não foi Cristo que disse: "Amarás... o teu próximo como a ti mesmo."?
Nestas palavras estava Cristo a dizer-nos que o limite do amor ao outro é o amor a si mesmo, e que o amor a si mesmo é o ponto de partida para o amor ao outro, mas também o ponto de chegada.
Dito de outra maneira: o amor ao outro é o melhor caminho para o homem se amar a si próprio.
Cristina Campo critica Job porque " não teve nenhum respeito por Ele, nem reserva, nem discreção." Mas Job era apenas homem, e até aceitou resigandamente perder os seus bens e a sua saúde. Mas como poderia Job aceitar a perda de seus filhos que nenhuma culpa tinham dos pecados do pai, que nenhuns pecados cometera, mas servia apenas de joguete entre Deus e o Demónio?
Ele era apenas humano, o seu amor nunca poderia ser infinito, pois nem infinito é o amor de Deus pelos homens. Porque Deus há-de julgar e condenar a grande maioria dos homens, aceitando assim a perda do seu amor por eles ( apesar de Giovani Papini os tentar salvar a todos, de Gilles de Rais a Tamerlão e a Sade, no seu JUÍZO UNIVERSAL - mas não já ao sádico Hitler nem ao cínico Stalin).
Na verdade, o credo cristão, embora Lucas coloque na boca de Cristo as palavras: " mas aqueles que forem julgados dignos de participar do outro mundo, e da ressurreição dos mortos, não se casam nem são dados em casamento, porque já não podem morrer: são semelhantes aos anjos...", apesar disso, o credo cristão tem como princípio de fé a ressurreição da carne. E tal não pode significar outra coisa que, até na ressurreição, o homem não deixará de ser homem.
Por isso, o amor do homem apenas poderá ser humano, aceitando a perda.
A crença e o infinito amor a Deus eram uma miragem de Cristina Campo.
Porque o deserto nunca estará prenhe de água.
Porque ao homem nunca será dado ouvir, como pretendia HAKUIN no seu koan, " o aplauso de uma só mão."