Rembrandt-A RONDA DOS PRISIONEIROS
Já esqueci o meu verdadeiro nome. Aqui, na prisão, todos me chamam por Beiças. Estou aqui preso há treze anos e não me recordo de me tratarem por outro nome. Antes de para aqui vir, também os lábios marcavam o meu corpo – e a minha alma. A última mulher cujo corpo recordo – e é o único que recordo – dizia: os teus lábios são dois lençóis vermelhos. Cobre o meu corpo com os teus lençóis vermelhos.
Eu alguma vez terei sido eu - não terei sido sempre esta extensão da minha boca, esta carne suave em forma de barco perdido que me liga ao mundo?
Todas as mulheres com quem fiz amor – e com todas as mulheres que penetrei com o meu sexo eu fiz amor - se fixavam nos meus lábios. Mordiam-nos, faziam deslizar por eles os seus próprios lábios, ou, mais frequentemente, a língua, e sempre, sempre, queriam experimentar nos lábios do seu sexo a carne abundante dos meus lábios. Pensavam que com isso extraíam prazer, e me davam prazer, isto é, vida, quando, na verdade, o que deles ainda recordo é o sabor a peixe morto, e triste, infindamente triste.
Os homens com quem lutei corpo a corpo procuravam sempre os meus lábios para os morderem: procuravam ferir-me precisamente no lugar onde eu era eu mesmo, nesse lugar em que eu me erguia para o mundo. Eles estavam certos de que cortando os meus lábios com os seus dentes me cortariam a mim próprio em duas partes que nunca poderiam ser cortadas para que eu fosse eu, cortariam a minha vida.
Vida? Mas o que é este resultado do ar que respiro, da água que bebo ou dos alimentos que como? Serão estas reacções químicas a que chamamos vida algo de totalmente diferente daquelas reacções químicas que se produzem no coração da terra e nos dão a escória, mas também, tão raramente, o diamante?
HENRIQUE DÓRIA (excerto de romance a publicar)