blog filosófico, cultural e político
Segunda-feira, 25 de Outubro de 2004
GOYA-Cão
Domingo, 24 de Outubro de 2004
FÁBULA CHINESA
A centopeia era feliz, muito feliz.
Até ao dia em que um sapo faceto
Lhe perguntou: " Diz-me, por favor,
Por que ordem pões as patas."
Aquilo preocupou-a tanto e de tal modo
Que ela já não sabia mais o que fazer
E ficou imobilizada no seu buraco.
Domingo, 17 de Outubro de 2004
...
«Se tu soubesses», disse Deus,
«como pode ser longa a eternidade
para alguém do meu género,
que governa sozinho e sem mais lei
que o seu capricho!
Perdoa-me se foi por diversão
que te deitei ao mundo, ó meu bípede
frágil e mole, tagarela e hipócrita...
Tu és para mim um passatempo
como o besouro ou o arco-íris,
em que pus sete cores em vez de doze ou vinte.
Tomas-te a sério? Não o deves
pois acabo por matar as minhas criaturas,
tendo feras de mais
para açoitar, lá onde é o meu nada.
Confesso-te: tu és o meu preferido
entre os seres provisórios.»
ALAIN BOSQUET- O Tormento de Deus
Quarta-feira, 13 de Outubro de 2004
SÓ TEMOS A INDIFERENÇA DE DEUS
Só temos a indiferença de Deus
Quando os dias, coléricos, rugem
No horizonte de sangue.
Como poderemos então erguer-nos para os céus
Se os próprios anjos que nos seguem
Trazem cortada uma asa
E a outra está, de nos proteger, exangue?
HENRIQUE DÓRIA, poema incompleto escrito em 13.10.2004
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"O Mundo começou sem o homem e acabará sem ele. As instituições, os costumes e os hábitos que eu teria passado a vida a inventariar e a compreender são a eflorescência passageira de uma criação em relação à qual não possuem qualquer sentido senão talvez o de permitir à humanidade desempenhar o seu papel.
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Quanto às criações do espírito humano, o seu sentido não existe senão em relação a ele, e elas confundir-se-ão com a desordem quando ele tiver desaparecido.Se bem que a civilização, no seu conjunto, possa ser descrita como um mecanismo prodigiosamente complexo em que seríamos tentados a ver a oportunidade que o nosso universo teria de sobreviver, se a sua função não fosse senão fabricar o que os físicos chamam entropia, isto é, inércia."
CLAUDE LEVI-STRAUSS- Tristes Trópicos
Domingo, 10 de Outubro de 2004
GOYA-Saturno
VELUDO AZUL
No pêndulo de sangue
viera a noite inquieta
e com a noite a porta
atrás da qual os seus lábios se escondem.
Sonhara então com o vaso estanhado
onde guardava os segredos
de si próprio,
o espelho quebrado
no tecto do seu quarto
onde ele dormia de olhos abertos
e teve medo
-até que uma voz o chamou:
uma voz distante,
ferida,
nua em seu veludo azul.
HENRIQUE DÓRIA- Escadas de Incêndio
Quinta-feira, 7 de Outubro de 2004
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O homem assiste à infância do Homem. Como as crianças é simultaneamente um ser cruel e terno, que sente prazer em esmagar um bicho, que sente prazer em agredir e ferir outra criança, que ri do sofrimento alheio, que sente necessidade de conquistar espaço, nem que seja pela violência, para se sentir seguro. Dizia Santo Agostinho que o pecado está presente até nas crianças de colo: o pecado da gula bem patente nelas quando sorvem com sofreguidão o seio da mãe, mesmo depois de saciadas de leite.
Santo Agostinho carregava sobre ele a obsessão do pecado, porque se considerava como tendo sido um grande pecador antes de se ter convertido. Era essa obsessão que justificava o exagero do seu exemplo.
Mas se Agostinho estivesse a pensar no homem que, desde há uma dúzia de milhões de anos, dá os primeiros passos sobre a Terra, no homem que só há trinta mil anos começou a experimentar a necessidade e o prazer da arte, sem dúvida que o homem cruel, egoísta e cínico que domina os primeiros dias da Humanidade que são os dias de hoje, seria bem a imagem da sua criança pecadora.
HENRIQUE DÓRIA
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Nós, os portugueses, de maus imitadores que somos de tudo e de todos, tiramos uma lição: não sabemos imitar bem senão os portugueses.
AGUSTINA BESSA LUÍS- Contemplação Carinhosa da Angústia
Terça-feira, 5 de Outubro de 2004
UMA HISTÓRIA NUM CONGRESSO SEM HISTÓRIA
O décimo quarto Congresso do Partido Socialista que decorreu em Guimarães foi um congresso sem história, na medida em que a sua história foi toda escrita antes dele. Mas, apesar disso, foi palco de um facto muito importante pela negativa: o discurso de apresentação da moção de José Sócrates feito por Jaime Gama.
Manuel Alegre classificou esse discurso como podendo ter sido subscrito por Cavaco Silva. Tal afirmação foi interpretada por alguns analistas e partidários de Sócrates como um desabafo de despeito por quem tinha perdido as eleições para Secretário Geral do Partido Socialista.
Mas se nos libertarmos desse preconceito e analisarmos bem o discurso de Jaime Gama, talvez cheguemos a esta conclusão mais dura do que aquela a que chegou Alegre: nem Cavaco Silva escreveria aquele discurso. Seria necessário pedirmos a Durão Barroso para o fazer.
Senão vejamos.
Gama começou o seu discurso por afirmar aquela que, no seu entender, é a posição do Partido Socialista no espectro político nacional. O Partido Socialista, segundo Gama, não é o partido de uma ou de algumas classes, mas um partido de todo o povo.
Esta frase, partido de todo o povo, que em Jaime Gama certamente não é inocente, tem uma história. E supomos que Gama não a ignorará.
No final dos anos sessenta do século passado, Leonid Brejnev, Secretário Geral do Partido Comunista da União Soviética, fez alterar a concepção do Partido, que se considerava como partido da classe operária, para partido de todo o povo. Na terminologia marxista-leninista, significava isto que a classe operária deixara de existir como classe distinta na União Soviética, o que, segundo Marx e Lenine só aconteceria com o advento do comunismo, isto é, com o desaparecimento das classes e do Estado. Mas Brejnev, numa revisão da doutrina, antecipava o fim da história, e afirmava que na União Soviética todos eram iguais, tudo era povo.
Bem sabia Brejnev e a numenklatura que assim não era, que a União Soviética era dominada por uma poderosa oligarquia que chamava para si o essencial dos benefícios, particularmente os económicos, do poder.
Mas quis com a revisão da doutrina oficial dizer à classe operária e às classes médias da União Soviética que era legítimo o governo da oligarquia, porque esta também fazia parte dessa amálgama que é todo o povo.
Gama fez agora o mesmo: o Partido Socialista, segundo Gama, deixou de se dirigir preferencialmente à classe operária e às classes médias para se dirigir a todo o povo.
Mas como todo o povo português não tem uma única voz, mas vozes distintas, e que quem faz ouvir a sua voz no poder é a oligarquia que nos governa na realidade os Jardim, os Mello, os Champallimaud, os Espírito Santo, os Azevedo, e muito poucos mais Jaime Gama disse, por outras palavras, que o Partido Socialista deve é falar para estes, ou melhor, através destes.
E assim, na visão de Gama, o Estado deve ser limitado, como dizem todos os oligarcas que citámos. Isto é, deve deixar para a oligarquia tudo o que dá lucro, e deve fazer com que tudo dê lucro.
Por exemplo: a Saúde tem de dar lucro.
Daí os hospitais empresa e a sua entrega aos Mello que os fazem dar lucro, nem que seja o Estado, isto é, cada um de nós, a pagar esse lucro, como sucedeu com as contas desses hospitais que de um saldo positivo inicialmente propagandeado pelo ministro Pereira, passou para um saldo negativo de centenas de milhões de euros depois de feita a revisão das contas.
E quem diz a Saúde, diz a Educação, diz a Cultura, diz a Defesa, etc.
Como Durão Barroso, como esses oligarcas, Gama insiste nas reformas que é necessário fazer para que tudo dê lucro, para que o Estado não seja mais do que um instrumento mínimo para auxiliar a que tudo dê lucro para essa oligarquia.
Para minorar os efeitos da pobreza, o Estado deverá apenas levar a cabo uma política MÍNIMA de assistencialismo, uma nova espécie de sopa dos pobres.
O papel que Jaime Gama atribui ao Partido Socialista não é um papel de combate às enormes desigualdades, mesmo à enorme miséria que existe na sociedade portuguesa.
Note-se que Gama, no seu discurso, nem sequer falou num diálogo com os sectores empresariais que na sociedade portuguesa são capazes da inovação e do risco, naqueles que não precisam das negociatas com o Estado e do descarado privilégio que deste conseguem para prosperarem.
Gama, se analisarmos com atenção o seu discurso, disse que o Partido Socialista deve falar preferencialmente com aqueles mesmos sectores que, antes do 25 de Abril, dominavam a sociedade portuguesa e que continuam agora a dominá-la - sempre com o apoio do Estado que dizem combater.
É isto que tem feito Tony Blair, quer em política interna quer em política externa, aliando-se a Bush.
E parece que, para a linha agora triunfante no Partido Socialista, Blair é o grande exemplo.
HENRIQUE PRIOR