À força de representar, o meu corpo já não é o meu corpo, eu já não sou eu, a minha vida já não é a minha vida.
Ouço o ruído dos aplausos. Não, não é o ruído dos aplausos. É o ruído do vento em que deixei arrastar a minha vida. E o vento uiva ao dobrar os gumes do tempo.
Vesti a pele do rei e vesti a pele do pediente, a pele do sábio e a pele do louco. E, entre elas, muitas outras peles moldaram o meu corpo.Tantas que me fizeram esquecer a minha própria pele.
Por mais que falem em alma, a nossa alma é a nossa pele. Esquecendo-me da minha própria pele, esqueci-me da minha própria alma.Acabei por ter a alma de todas as personagens de que vesti a pele.
A minha alma já não sei encontrá-la.
A palavra vida perturba-me porque tem tantos sentidos, tantas peles de tantos tecidos arrastados pelo vento.
Do lugar do espectador, vejo-me, agora, a mim mesmo, no palco.
O lugar onde me sento é vermelho.O palco é negro, atravessado por uma luz violeta. Eu, actor, nos últimos tempos, esquecia-me das palavras. Mas, da plateia, lembrei-as a mim mesmo:
-Não ser, eis a questão.
HENRIQUE DÓRIA- Viagem Para Uma Nebulosa.