Mas, a partir de Março, quando o sol aquecia, todas as manhãs lá estava ele no cruzamento da Rua Belos Ares com a Avenida da Boavista, mesmo junto ao bingo e em frente do World Trade Center e do Sheraton Hotel.
Os automobilistas chegavam a estar dois minutos parados frente aos semáforos, à espera que caísse o sinal verde, e ele tinha tempo para os abordar. O facto de se encontrarem dentro de automóveis a serem olhados pelos que seguiam atrás na bicha tornava-os mais vulneráveis as investidas do pedinte.
Não tinha o ar desgraçado e infeliz dos outros pedintes. Aproximava-se com desenvoltura dos automóveis e, se bem que fosse calvo e tivesse barba grisalha, facilmente se notava que nele a calvície era exagerada porque penteava o cabelo para trás, e o olhar vivo não deixava que a barba fizesse acreditar que tinha mais de cinquenta anos. Quem olhasse, poderia dizer como a minha mulher, que o detestava: este indivíduo tem bom corpo e idade para trabalhar.
Mas não. Preferia pedir - mesmo que soubesse que o esmolar era para ele uma impostura que, até pelas roupas ainda em estado razoável que trazia, aqueles a quem estendia a mão não deixavam de perceber.
Assim, simultaneamente pedinte e trocista, lá se ia aproximando de um vidro que se fechava, de uma mão que se estendia com uma moeda de cem escudos ou de um rosto que fingia que não o via nem ouvia, caminhando sempre sobre o muro da sua condição de vagabundo, vigarista e pedinte.
Naquela manhã de Maio branca e quente, talvez ele se tivesse levantado particularmente feliz por estar vivo. E isso fazia com que se lançasse ao trabalho com maior ardor. Caminhava gingão e matreiro de carro para carro, estendia a mão, pedia "por favor" uma esmola - punha um ar sério se lha davam, sorria se nada recebia. Outras vezes pedia só um cigarro. Mas quando viu aquela mulher jovem e loura chegar no Volvo vermelho e aerodinâmico, com o braço apoiado na janela, aproximar-se devagar do último automóvel da bicha, até parar, ele saltou dois automóveis que o separavam dela e encostou-se, sorridente, estendendo o braço, enfiando-o dentro do Volvo, quase tocando no rosto da mulher que o olhou com raiva e desprezo e, aproveitando a oportunidade de o semáforo ter passado do vermelho para o verde, lhe cuspiu na mão, guinou subitamente da esquerda para a direita, acelerou e passou o semáforo a toda a velocidade.
E ele ficou ali, perdido no asfalto, a olhar para a mão, a tentar perceber o que se passara, a tentar ver o Volvo que já ia longe e talvez ele nunca mais voltasse a encontrar.
Sentiu então uma onda enorme e negra invadir as casas, as ruas, as praças, envolvê-lo num turbilhão e arrastá-lo ate ao fundo do mar.
Eu, que assisti a tudo isto no passeio, caminhei em direcção a um tapume que protegia os peões das obras de um banco próximo. No tapume estavam colados cartazes impressos em azul, negro e dourado, onde um olho solar lançava um triângulo de luz sobre duas serpentes entrelaçadas e, em grandes letras de ouro, sobre o fundo negro, estava escrito: O HOMEM ETERNO.
A grande questão é saber porque há seres humanos que encaixam e outros que não encaixam no mundo. A questão da criação, aparentemente maior, a partir do momento em que a manifesta imperfeição do criado põe em causa o criador, deixa de ter sentido.
O mundo é a nossa única casa conhecida, e interessa saber COMO estamos aqui e não porque estamos aqui.
Particularmente depois do Gulag e de Auschwitz, interessa ao homem perguntar porque há mal em vez de bem, e não porque há algo em vez de nada.
HENRIQUE DÓRIA- Fragmentos
Chegou demasiado tarde
À pedra-pura.
Quando chegou todas as partes
Do seu corpo
Encontrou-as
Demasiado fechadas
Pelos lenços-negros.
Não as encontrou.
Só às sombras escoando-se na ampulheta
E às noites no poço-do-lobo.
Vagueia agora nas ruas com a cabeça envolta
Num véu-cinza
A todos perguntando
-Porque existe algo em vez de nada?
HENRIQUE DÓRIA-Mar de Bronze