Esse acaso, essa improbabilidade que somos tantas vezes se transforma num milagre!
Mas logo o milagre dá lugar ao drama da existência e este ao cataclismo da morte.
O ser e o nada, o amor e a dor consumindo-se mutuamente.
HENRIQUE DÓRIA-Fragmentos
Uma voz escapava-se sobre as águas
Entre o nada e o muro exangue-
E atrás dela voavam as tuas mãos
Com os dedos em sangue.
Nunca encontrarás essa voz
Desejada
Porque as fadas estão sempre em viagem
E de costas voltadas para nós
Feitas que são da árvore incendiada
Que nos deixou sós.
DO PORTO A BURGOS
Viajar de Portugal para Espanha é tarefa fácil nos tempos de hoje. Recordo agora uma viagem feita nos meus quinze anos em que demorei um dia a chegar de Coimbra a Compostela. Se houve algo
A minha viagem ao País dos Cátaros iria começar por Pau. Em Pau, cidade que foi já capital de Navarra, começa-se a sentir o pulsar do Languedoc. Mas, antes de alcançar Pau, eu quis recordar essa viagem feliz dos meus quinze anos, através de Espanha e do sul de França, e rememorar aquele que fora para mim o lugar marcante dessa viagem: S. Sebastian.
No meio da viagem, porém iria parar em Burgos, cidade que atravessara já algumas vezes, mas sempre sem poder admirar aquela que é uma das mais belas catedrais do Mundo. Seria agora que a peregrinação a esse lugar de imensa beleza iria ser feita.
Do Porto à fronteira de Chaves não demoramos mais do que hora e meia, sem forçar a velocidade - metade do tempo que se gastava há trinta anos. Faço uma paragem antes de Espanha para saborear, por muitos dias, o bom café português. Do outro lado da portuguesa Vila Verde da Raia – que lindo nome! – está a aldeia espanhola de Feces de Abajo, sobre a qual ainda não compreendi porque não lhe foi mudado o nome, como em Portugal se fez de Porcalhota para Amadora.
Entre Portugal e Espanha, a não ser nas estradas, agora piores em Espanha, não se nota qualquer diferença. Os campos, as casas, as pessoas são iguais de um lado e de outro da fronteira que o Tâmega une, provando que não faz sentido a invocação da diferença geográfica para justificar a independência de Portugal.
Chegamos junto de Verin, por estrada, dirigindo-nos depois a Burgos por auto-estrada. Com uma paragem para descanso e abastecimento de combustível –e mais uma vez notamos que Portugal leva a palma a Espanha no que toca à rede de auto-estradas, pois a estações de serviço em Portugal são francamente melhores que em Espanha – cerca das onze horas estávamos
Bom encontro com a beleza despreocupada antes do encontro com a beleza sábia da catedral.
Hoje património da Humanidade, a catedral de Burgos é uma construção que acumula cinco séculos de História. Iniciada em 1221 sob o patrocínio de Fernando III, de Leão e Castela, o Santo, e do bispo D. Maurício, foi concluída apenas no século XVIII, com a construção da Capela das Relíquias e de Santa Tecla, e da Sacristia Maior. Entre tantos séculos e tão diversos estilos os seus obreiros foram conseguindo aquele equilíbrio estético tão difícil de alcançar.
De “incomparável” a classificou o papa Leão XIII, e de “assombro das nações” o poeta J. Zorrilla. Nela não sabemos o que admirar mais: se a floresta de pedra das sua torres se a beleza serena da sua fachada. Se a grandiosidade luminosa da nave central, se a decoração em claro/escuro das capelas laterais. Se a quase austeridade da capela de Cristo se a decoração vertiginosa da Capela de Santa Tecla, obra colectiva do ano de 1736. Se os grandiosos túmulos de reis e bispos, do Cid e de D. Ximena, se os majestosos e profusamente decorados cadeirões do capítulo, em madeira de nogueira, ou, até, a carroça de prata que todos os anos sai para a procissão do Corpus Cristi. Talvez eu retenha, para mim próprio, o Retábulo Maior da Capela da Conceição e Santa Ana, obra de mestre Gil de Siloe em estilo gótico flamejante, autor de muitos outros trabalhos na catedral.
Depois de visitarmos o edifício principal, quase nos falta a respiração para visitarmos os claustros e o museu cuja riqueza e variedade de estilos e peças merece também uma visita atenta.
Parafraseando Camões, mais vale vê-la que contá-la, porque, por melhor que se descreva, só perante a visão de tanta beleza a poderemos compreender.
Mas antes de partir para S. Sebastian, impunha-se também uma visita à Cartuxa de Miraflores, para aí admirar mais uma fabulosa obra de mestre Gil de Siloe, os túmulos de João II de Castela e Isabel de Portugal.
E, mais uma vez, o espanto perante tanta beleza. Não poderia ter começado melhor a viagem ao País dos Cátaros.
Escrever a morte
em palavras púrpura
sobre o branco nada
porque do inferno
só poderemos trazer sombras
ao som da flauta
-ou estátuas de sal.