Não sou um nómada: como todo o camponês, acredito na força das raízes.Daí a minha proximidade existencial a homens como Tolstoi ou, até, Cioran.
Mas deles estou também distante porque, para mim, a liberdade é uma necessidade preciosa, preciosamente rara no universo. Muito mais rara do que a própria vida.
Ainda que só por brevíssimos momentos o homem seja livre.
Henrique Dória
1.
Esta luz é como o lírio breve:
ela só veste de púrpura
toda a primavera.
2.
Quebar-se-á a lua contra a água
ao descobrir a noite
na sua outra face?
3.
Então o corpo é um vaso
onde a noite se transborda
e o pranto da lua
se torna em vinho fértil
e silêncio.
4.
Estrelas inquietas
caem sobre o branco da noite
quando a sua solidão
alcança unir a dor
e a dádiva.
5.
Noite! Oh noite, escuta!
Traz uma estrela
às bodas de carmim.
HNERIQUE DÓRIA-Círculo da Terra
Somos a periferia de Deus. Mas não serenamos enquanto não chegarmos ao seu âmago.
Cem anos nos bastaram para conhecermos muitos dos segredos da vida. Mais cem anos nos hão-de bastar para conhecermos os segredos da criação. E mais outros cem anos para conhecermos os segredos da morte.
Heinrich Füger-Prometeu levando o fogo à humanidade
O homem terá nas suas mãos as chaves do tempo.Mas surgir-lhe-á então a grande angústia: o que fazer com elas? Perpetuar-se como um gene egoísta ou aceitar a morte por amor ao outro?
Seremos como deuses e, no entanto, aceitaremos abdicar?
HENRIQUE DÓRIA-Fragmentos
Ler Dante é comunicar com os grandes mortos de todos os tempos.Eles falam-nos como as sibilas: a sua voz é uma mistura de água e fogo vindos do fundo da terra.
Dante encontra Odisseus no Inferno. O seu orgulhoso desejo de conhecimento e aventura levou-o a deixar a mulher amada, o filho e o velho pai para se lançar à aventura de conhecer o mundo proibido aos mortais, aquele que se encontrava para além das Colunas de Hércules, isto é, do Estreito de Gibraltar, que assinalava o fim do mundo conhecido dos gregos. Para além das Colunas de Hércules encontravam-se os mares antipodas, aos quais nunca se poderia chegar, já que os homens que neles se aventurassem necessariamente cairiam no abismo cósmico ( note-se que este era um dos argumentos daqueles que combatiam a esfericidade da terra).
A última aventura de Odisseus acaba em catástrofe na Divina Comédia: Ulisses e os seus companheiros são engolidos pelos abismos marinhos.
Mas dúvidas não há de que Dante se via a si próprio como um novo Ulisses na empresa que levava a cabo, a criação da Divina Comédia.
As viagens de ambos são classificadas por Dante como folle ( loucas).
Porquê então Dante alcança o Paraíso e Odisseus é sugado para o Inferno?
Cremos que tal sucedeu porque a motivação de Ulisses é apenas a soberba, o orgulho do conhecimento e do triunfo pessoais.Enquanto que a viagem de Dante é motivada pelo amor que tudo motiva, incluindo a razão.
Ulisses abandona, pelo conhecimento, os seres amados.
Dante vai ao encontro dos seres amados através do seu poema, que é conhecimento: ao encontro de Virgílio ( o amor da poesia), de Beatriz ( o amor humano) e de S. Bernardo ( o amor divino).
Ler, hoje, Dante é encontrar um guia para a morte.
Não sou, nem de longe nem de perto, especialista em Dante.Mas sendo Dante, para mim, o maior poeta, não deixo de ser seu leitor apaixonado e de tentar interpretar a sua mensagem.
É sabido que Dante é um poeta esotérico.A sua ligação à Ordem do Templo é também conhecida, e não é sem razão que São Bernardo, e não já Beatriz, é a sua companhia no décimo céu, no final da Divina Comédia: S. Bernardo que foi o verdadeiro criador da Ordem do Templo ao dar-lhe os seus estatutos e divulgá-la por todo o mundo católico.
Dante foi um dos mestres da ordem secreta Fede Santa, cujos membros se intitulavam Fedele d`Amore. A ordem Fede Santa era uma "Terceira Ordem", grau superior na filiação templária. Dante era um irmão FIEL DO AMOR. O amor é, assim, em Dante, a roda que move o mundo para o bem, para a luz, para a felicidade eterna.
É sob este prisma que deverão ser entendidos os versos finais da Divina Comédia:
A l´alta fantasia qui mancò possa;
ma già volvega il mio disio e´l velle
sí come rota ch´igualmente è mossa,
l´amor che move il sole e l´altre stelle"
Proponho para estes versos a seguinte tradução, em alternativa às duas mais conhecidas da língua portuguesa, a de Vasco Graça Moura e a de Cristiano Martins:
"Era a alta fantasia aqui perdida;
mas já erguia o meu desejo as velas,
e como roda por igual movida,
o amor que move o sol e as estrelas."
Cristiano Martins entende a palavra amor como referindo-se a Deus. E, por isso, na sua excelente tradução a palavra amor surge com letra maíuscula, o que não corresponde ao original. Graça Moura parece entender esse amor como amor humano. E por isso mantém a letra minúscula do original. Mas a sua versão esquece o esotérico em Dante. É esse amor esotérico que pretendo realçar nesta tradução, pois me parece o que mais está de acordo com o poema e a condição de Fiel do Amor, cavaleiro Kadosch, isto é, consagrado, que foi Dante.