Acabou-se a carne
Só restam meadas de mortos
Fica-lhes tão bem a alma
Transparente sopro de vidraça
Dentro duma campânula.
Coleciono insignificâncias
Grãos de areia
Esperma de caranguejo
Em forma de cálice
Cascas de nozes
A arder
Para me deitar ao mar.
Estrelas estão explodindo
Aos pares
À ordem dos tambores do tempo.
De cabeça envolvida por um só
Véu escarlate
Vão
O amor e a beleza
Para lugar nenhum
Onde não serão mais
Que eternidade.
DALI- Ascensão
O coração é feito do jarro de abas vermelhas
Pintadas pela música
-Devora-o oh mulher!
Os homens são feitos dos piolhos e das pulgas
Pelas danças de Deus
-Alimenta-os oh sangue!
A casa e o mundo são feitos do fumo
Do incenso dos homens
-Devora-os oh lume!
As trevas são a vertigem da luz
Com os seus grãos esmagados na monótona mó.
-Esmaga-os oh tempo!
A morada de Deus é o vórtice fundo
E o Seu poder o eterno círculo
-Engole-O oh Nada!
Os homens são animais de esperança, que constantemente tomam os seus desejos por
realidades, e tanto os tomam que, algumas vezes, conseguem transformar os desejos em
realidades. É assim em cada ano. Todos temos esperança que cada ano seja melhor que o
anterior, que a felicidade que não alcançámos venha agora, neste ano nascido.
Talvez por isso o homem continue a ser o animal mais bem sucedido, porque, sem esperança, o homem caminharia inevitavelmente para o tédio, e do tédio para a destruição.
Tenho para mim que o principal criador do nazismo foi o tédio.
Foi a esperança a principal razão do triunfo do Cristianismo. Num mundo cheio de sofrimento e violência, o cristianismo começou por pregar a paz e o amor, e, sobretudo, a esperança numa vida eterna plena de felicidade.
Que atracção tão grande para esses tempos assolados pela fome, pela peste e pela guerra!
E essa atracção era tanto maior quanto pregadores, como o incrível Tertuliano, ameaçavam quem não fosse cristão com todos os sofrimentos mais horríveis que o homem poderia imaginar infligidos por Satanás para toda a eternidade. E os homens de então abraçaram essa nova esperança. Aí onde os antigos deuses falharam, talvez o novo deus fosse bem sucedido.
Mas aquilo que prometia Tertuliano para o outro mundo em medida divina, sem dúvida que o homem o alcançará neste mundo em medida humana. Trata-se apenas de uma questão de tempo. Sem dúvida que os homens futuros usarão cada vez mais as zonas privilegiadas do pensamento, em desfavor do cérebro reptiliano que comanda os instintos básicos, incluindo a violência.
Hoje, já ninguém aceita as palavras que João Evangelista colocou na boca de Jesus, quando este se encontrava em casa de Marta e de Maria: pobres sempre os haverá. A pobreza é apenas tolerada como uma situação transitória, e não aceite como uma inevitabilidade da condição humana.
A esperança de hoje está em ultrapassar a pobreza, em minorar o sofrimento da doença, da violência e da morte.
Como fazê-lo?
Convido todos os que lêem o odisseus a reflectir nisso, neste ano que nasce de novo.