A recente história da D. Augusta Martinho, a senhora que morreu abandonada num apartamento da Rinchoa, e cujo cadáver ficou encerrado, durante nove anos, até que o fisco, que perdoa aos fortes mas não esquece os fracos, sem sequer os mortos, lhe vendeu o apartamento, nove anos após a morte, essa história tem servido de desavergonhado e cínico pretexto para os liberais da nossa praça atacarem o que ainda resta do decepado Estado Social.
Um dos exemplos desse ataque foi a crónica publicada no Expresso de 19 de Fevereiro por uma das lumináriasdo nosso provincianismo liberal que dá pelo nome de Henrique Raposo. Diz o Dr. Rapaso na sua crónica:
"... o Estado moderno tem um demónio na cave ...tem o poder para demonizar uma sociedade até ao ponto de destruir a vida de bairro e os laços de vizinhança e de civilidade, essas armas pré-políticas de um país."
O discurso do Dr. Raposo é o de um incendiário que se arvorou em bombeiro.
Haverá alguém minimamente decente e com dois dedos de cabeça que não perceba que o caso da D. Augusta é o resultado da destruição dos laços de sociabilidade e civilidade pela prática e o pensamento liberais e capitalistas?
Não garantia o supremo guia do pensamento liberal que foi Adam Smith, que se cada um tratasse apenas de si próprio, a mão invisível do egotismo iria conduzir as sociedades a um bem estar geral?
O princípio de cada um por si não é o primeiro mandamento da bíblia liberal, contra o "demónio" do pensamento socialista que só concebe o eu conjuntamente com o outro?
Não é o capitalismo selvagem dos dias de hoje, que vai dos ostensivos vigaristas como Madoff e os nossos Oliveira e Costa e seus amigos, ao cínico Alexandre Soares dos Santos (que é, juntamente com Belmiro de Azevedo, a principal causa do estado da nossa economia através do aniquilamento que praticam do tecido protutivo nacional) o resultado evidente do pensamento e da prática liberais?
Deixará esse capitalismo selvagem, causa e consequência do liberalismo económico e social, algum espaço para a criação de laços de sociabilidade e solidariedade? Não é a palavra solidariedade uma palavra maldita para o pensamento liberal, que prefere a caridade como palavra chave das relações sociais?
Aos empregados do cínico Soares dos Santos que ganham o salária mínimo nacional, estão sujeitos a contratos a prazo de seis meses, e têm de trabalhar num segundo emprego até às 12 horas de trabalho diário para poderem sobreviver, que dão a chave de casa aos filhos ainda crianças porque à hora de saírem da escola pública os pais ainda estão a trabalhar, a esses é-lhes deixado pelo liberalismo económico algum espaço para os laços de sociabilidade, para os "laços de vizinhança e civilidade", no dizer do Dr. Raposo?
Não sabemos nós que estas cidades-monstros-de-solidão criadas pelo capitalismo selvagem do pensamento liberal, esta economia que transforma o homem em simples peça de uma monstruosa máquina de fazer cada vez mais dinheiro para os cada vez mais poderosos, retiraram aos homens o corpo e a alma que lhes permitiam criar laços de sociabilidade e civilidade?
E que, apesar de tudo, o Estado é o único instrumento que têm os homens (não cidadãos, porque tal não lhes é permitido) aos quais o liberal-capitalismo retirou o corpo e a alma, para lhes conceder algum apoio quando essa máquina monstruosa de fabricar dinheiro, que Dr. Raposo defende, deles se desfaz como dum farrapo velho?
Como podemos não nos indignar quando vemos os liberais Dr.s Raposo, incendiários dos laços de humanidade e sociablidade, transformarem-se em bombeiros?
A grande nação egípcia acaba de conquistar para si e para um mundo um novo tempo de esperança.
Nesta libertação que vai triunfando, nem tudo o que parece, é. E isso é o maior motivo de esperança para o mundo nos próximos tempos.
O povo egípcio, na realidade, não estava só na sua revolta. Pelo contrário, tinha um aliado poderoso: a América.
Porquê então esta aliança que parece tão súbita e tão contra a estabilidade que a América tanto persegue?
A América percebeu, finalmente, que há duas realidades com as quais não pode continuar a contemporizar, sobretudo porque o seu tesouro se está a exaurir em despesas de guerra: não pode continuar a suportar a arrogância israelita, nem pode continuar a suportar a sua consequência direta, a hostilidade das opiniões públicas do mundo muçulmano.
A arrogância israelita deriva não só do enorme peso que o lóbi judaico tem na política interna e externa americana, mas, sobretudo, da cintura protetora que têm feito a Israel os governos dos principais países árabes que com Israel têm fronteiras, a começar pelo mais poderoso, o Egipto. Israel conseguiu ir comprando, ao longo dos anos, os corruptos regimes de Mubarak e da monarquia jordana. Era sobretudo a certeza de que dali não viria perigo que dava a Israel a arrogância e o sentimento de impunidade que nem a recente derrota no Líbano conseguiram travar. Daí a criminosa continuação da política de colonatos, e a intransigência negocial com uma Fatah incapaz de se libertar da tutela israelita.
Essa arrogância tinha como contrapartida a humilhação do mundo árabe, e esta, como consequência, as guerras que a América está a travar no Iraque e no Afeganistão, das quais sairá inevitavelmente derrotada. Mas que, para além da derrota anunciada, estão a provocar um enorme impasse na economia americana, cada vez menos competitiva com as economias emergentes, em particular a chinesa.
A América compreendeu que teria de se libertar da arrogância de Israel,e libertar-se da política de suporte de regimes árabes corruptos que lhe trazia um descrédito total perante a opinião pública árabe.
O primeiro e grande passo para essa libertação está dado. O Egipto (como a Tunísia) libertou-se de um regime colaboracionsta e corrupto, e tudo indica que se irá instalar nessa grande nação uma democracia que certamente não estará muito longe da democracia na América, pelo menos quanto a liberdade de expressão e liberdade de escolha política.
Isto é: Obama vai querer demonstrar que a democracia é possível nos países árabes, e vai querer surgir como o seu principal apoiante ( e, nisso, o que parece, é). Vai querer, enfim, que o Egipto passe a ser um bom exemplo e não um motivo de humilhação para o mundo árabe.
Vai querer também que se rompa o cinto de impunidade que tem suportado a arrogância de Israel, obrigando assim a que seja alcançada uma paz duradoura e sem grande humilhação para os árabes.
E tudo isso são sinais de esperança para todo o mundo nos tempos que correm.