Construí no meu cérebro uma sala que é o meu refúgio. Não é como as salas perfeitas, protegidas e definitivas que todos conhecemos e habitamos, mas uma sala sem teto nem janelas, sempre aberta para o infinito. Começou por ser pequena, essa sala. Apenas metro e meio de altura, precisamente a medida que separa o homem comum do pigmeu ou do anão. Quando comecei a construi-la pensava-me a mim mesmo como um homem comum, apesar dos meus doze anos. Mas acreditava que seria capaz de construir uma sala muito mais alta do que eu mesmo. E foi assim que construí essa sala com metro e meio de altura, com paredes translúcidas e uma porta justamente da minha altura, mas tão estreita que as suas ombreiras feriam o meu peito ao atravessá-la e me provocavam cicatrizes por essa frição tantas vezes repetida.
Não era vazia essa sala. Bem pelo contrário, estava cheia de estantes que comecei a erguer na minha infância.
Adivinho já que queres saber, leitor, o que continham essas estantes. Estranharás que eu te responda - nada, porque construir estantes para conterem o nada é uma tarefa inútil,ou pior, prejudicial, pois é construir para o vazio, e o vazio é algo a que o homem deveria ter horror, como os sábios, desde sempre, ensinaram.
(continua)
É tão misterioso estar aqui
E ter o cérebro trespassado por flechas
Negras e vermelhas
Nascer do baixo ventre
No mesmo lugar onde nasceu o Deus
Encarnado do amor
Morrer e ressuscitar de duas virilhas
Sempre
Até ao dia em que não mais
Irei
Brincar.
Não posso viver sem palavras. São perigosas, mas são o meu alimento. Por isso só as trinco em pequenas doses. E trago sempre nos bolsos das calças duas mãos cheias de palavras.
Mas como sou um desleixado, elas escapam-se através dos buraquinhos da sarja, ao longo das pernas. São tão ágeis que nem as sinto deslizar, rumo ao que elas pensam ser a liberdade.
Caem no chão, e eu calco-as com os meus sapatos de verniz escarlate. Esmago-as como a baratas loucas. Sinto o som da sua morte debaixo da sola: guerre-guerre-guerre.
Enfim, e para não me alongar. Há uma guerra nunca declarada entre mim e as palavras. Mas eu sinto na sua morte a minha própria morte sempre renovada.