blog filosófico, cultural e político
Quinta-feira, 27 de Agosto de 2015
A MORTE DE CORIOLANO -continuação

 

dali3.jpg

 

-Tanto orgulho tens em matar, Coriolano! No entanto, nunca te salvarás da morte. E, morto, ainda que herói, não serás mais que um nome balbuciado entre as sombras, um nome vago numa muda sombra perdida entre as profundezas da terra. Pensas que o tempo se fixará no teu mundo, mas o mundo de amanhã não será o mundo de hoje, e o amanhã do amanhã será diferente de tudo o que pensaste e de tudo o que há-de ser  na vida dos filhos dos teus filhos, até à centúria de gerações. Amanhã estarão vazios os palácios dos  senhores da terra no tempo presente. Doença, espada, lança, machado, ou o único punhal da traição, a todos hão de levar a barca do asqueroso Caronte.

    Os teus cabelos são cobras viscosas. Os teu olhos estão inchados do lume do ódio. O teu rosto é uma máscara de sangue. Tudo em ti inspira terror. Mas a morte está em teu redor, a morte fede à tua volta, nos cabelos, nos olhos e nos rostos de todos aqueles que queres esmagar, a morte fede à tua volta nas ruas cobertas do estrume dos bois, dos cavalos, dos jumentos,das ovelhas, das cabras, dos porcos, nos rios onde boiam as fezes dos homens, nas casas onde apodrecem a madeira e os restos de alimentos, nos corpos tumorosos, na boca dos que já perderam os dentes.Mesmo que não morras no campo de batalha trespassado por uma espada odiosa, Tisífone, em forma de serpente, há-de entrar na tua casa, estender-se no teu leito, enroscar-se a ti e estrangular-te e, nesse momento, também tu hás-de sentir o terror que dizes nunca ter sentido mesmo no combate mais feroz. E, depois da morte, nada mais serás do que o murmúrio duma folha seca de erva.

   Para seres tu tens de se o outro enquanto vives e não uma lenda. Para seres tu tens de sentir horror pelo caos, pela doença, pela miséria, pela fome medonha, por todas as feridas, por todo o sofrimento dos outros - E amor, amor pela verdade e pela beleza, amor pela alegria e por tudo o que é humano, amor por tudo o que é pequeno e simples e por tudo o que é alto e livre. Amor pela vida.

   O homem foi criado ereto pelos deuses para crescer em direção ao sol e às estrelas, para ser cada vez mais alto e não para descer em direção ao ventre da terra. Ereto, o homem poderá olhar os outros homens no fundo dos seus olhos, escutar neles o rumor da vida, perceber na beleza do seu rosto a verdade da vida. Ereto poderá olhar para a morada dos deuses, o Empírio, e sentir-se próximo deles, a criatura dos deuses eles próprios também criados, sentir-se uma antecâmara da divindade cujo chama da vida é o sopro dos deuses, uma criatura fugaz e perecível cuja vida é, por isso, mais preciosa, cujo momento que passa é, por isso, mais precioso, cuja beleza é, também por isso, mais preciosa.

   Nem a beleza nem a verdade dos outros te interessa. As cicatrizes que te deformam o rosto, marcas do horror, exibe-las como bandeiras. Tu sentes  desprezo pela vida, Coriolano. Mas o mistério da vida é maior, muito maior que o mistério da morte.

 

 



publicado por henrique doria às 21:45
link do post | comentar | ver comentários (1) | favorito

Quarta-feira, 12 de Agosto de 2015
A MORTE DE CORIOLANO ( continuação)

Giorgio-De-Chirico-Gladiators-2--S.JPG

 

-Amigo do povo, dizes-te. Mas estás só Temístocles. És um guerreiro, e a guerra é a solidão absoluta. A cada instante, a cada golpe, estás só perante a morte. Estás no meio de centúrias, de coortes, de legiões, mas só podes ter-te a ti próprio entre a multidão para defenderes a tua vida. Aí, nos campos de batalha, só ouves o grito da morte. Não tens tempo sequer para pensar nos filhos, na mãe, na mulher amada. A morte, os gritos da morte, rodeiam-te por todos os lados esvaziando o tempo. Saltas sobre montes de mortos para defenderes a tua vida: inútil porque só há morte por toda a eternidade. Matas para poderes viver, desde a tímida lebre ao mais forte guerreiro. Vê as cicatrizes que trago no meu corpo: estas cicatrizes a minha face exibe-as como bandeiras do meu triunfo sobre muitos mortos. Só esse triunfo dá sentido à vida porque só esse triunfo me colocará na eternidade da memória dos homens. Por centúrias e centúrias de anos os homens hão-de lembrar estas cicatrizes e dizer: em Roma houve um imortal.

A plebe que dizes amar só sabe a cor do pó. Ignora a cor do sangue triunfante. A vida da plebe é a vida das bestas, apenas pó sobre pó. A minha vida será sempre lume sobre lume, esse lume que é sangue a iluminar os nossos lares e me há-de iluminar para toda a eternidade. A plebe não tem lares nem lume. Medo de morrer, hoje? Não: terror de morrer para sempre.

Vê aquela cabeça espetada num ramo de árvore. Os olhos que não tiveram tempo para se fecharem à vista da morte só gritam de terror. O braço que jaz por terra, longe do corpo que lhe dava vida despede-se c0m terror. A perna decepada em que acabaste de tropeçar só parece mexer-se por terror. O rosto que acabou por morder o pó da morte e se volta para o silêncio do céu sem fundo só fala de terror. O cavalo que tem as tripas a sair-lhe do corpo e a custo resfolga, exala o último bafo de terror. O charco de sangue e lama em que acabaste de abandonar as tuas sandálias enterradas só tem o visco do terror. A espada, a lança, a flecha, o escudo, o elmo falam todos uma só língua, a língua do terror, a única língua que falam romanos ou gregos, etruscos ou gauleses.

Silêncio, vazio, ausência de luz, ausência de espaço, ausência de tempo, unidos o princípio e o fim, unidos o ponto e o infinito.

Não há horror. Há apenas terror. Esta é a verdade do mundo.



publicado por henrique doria às 16:25
link do post | comentar | ver comentários (1) | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Junho 2019
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
10
11
12
14
15

16
17
18
19
20
21
22

23
24
25
26
27
28
29

30


posts recentes

FRAGMENTO

VÊS-TE ELEITO ENTRE AS ES...

FRAGMENTO

VASOS

FRAGMENTO

O FUTURO DEVOROU O PASSAD...

FALO DAS COISAS SÉRIAS DA...

FRAGMENTO CONTRA CIORAN

UMA ESTRELA NA BOCA

FRAGMENTO

arquivos

Junho 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Maio 2018

Fevereiro 2018

Dezembro 2017

Outubro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Outubro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Abril 2013

Março 2013

Dezembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds