-Tanto orgulho tens em matar, Coriolano! No entanto, nunca te salvarás da morte. E, morto, ainda que herói, não serás mais que um nome balbuciado entre as sombras, um nome vago numa muda sombra perdida entre as profundezas da terra. Pensas que o tempo se fixará no teu mundo, mas o mundo de amanhã não será o mundo de hoje, e o amanhã do amanhã será diferente de tudo o que pensaste e de tudo o que há-de ser na vida dos filhos dos teus filhos, até à centúria de gerações. Amanhã estarão vazios os palácios dos senhores da terra no tempo presente. Doença, espada, lança, machado, ou o único punhal da traição, a todos hão de levar a barca do asqueroso Caronte.
Os teus cabelos são cobras viscosas. Os teu olhos estão inchados do lume do ódio. O teu rosto é uma máscara de sangue. Tudo em ti inspira terror. Mas a morte está em teu redor, a morte fede à tua volta, nos cabelos, nos olhos e nos rostos de todos aqueles que queres esmagar, a morte fede à tua volta nas ruas cobertas do estrume dos bois, dos cavalos, dos jumentos,das ovelhas, das cabras, dos porcos, nos rios onde boiam as fezes dos homens, nas casas onde apodrecem a madeira e os restos de alimentos, nos corpos tumorosos, na boca dos que já perderam os dentes.Mesmo que não morras no campo de batalha trespassado por uma espada odiosa, Tisífone, em forma de serpente, há-de entrar na tua casa, estender-se no teu leito, enroscar-se a ti e estrangular-te e, nesse momento, também tu hás-de sentir o terror que dizes nunca ter sentido mesmo no combate mais feroz. E, depois da morte, nada mais serás do que o murmúrio duma folha seca de erva.
Para seres tu tens de se o outro enquanto vives e não uma lenda. Para seres tu tens de sentir horror pelo caos, pela doença, pela miséria, pela fome medonha, por todas as feridas, por todo o sofrimento dos outros - E amor, amor pela verdade e pela beleza, amor pela alegria e por tudo o que é humano, amor por tudo o que é pequeno e simples e por tudo o que é alto e livre. Amor pela vida.
O homem foi criado ereto pelos deuses para crescer em direção ao sol e às estrelas, para ser cada vez mais alto e não para descer em direção ao ventre da terra. Ereto, o homem poderá olhar os outros homens no fundo dos seus olhos, escutar neles o rumor da vida, perceber na beleza do seu rosto a verdade da vida. Ereto poderá olhar para a morada dos deuses, o Empírio, e sentir-se próximo deles, a criatura dos deuses eles próprios também criados, sentir-se uma antecâmara da divindade cujo chama da vida é o sopro dos deuses, uma criatura fugaz e perecível cuja vida é, por isso, mais preciosa, cujo momento que passa é, por isso, mais precioso, cuja beleza é, também por isso, mais preciosa.
Nem a beleza nem a verdade dos outros te interessa. As cicatrizes que te deformam o rosto, marcas do horror, exibe-las como bandeiras. Tu sentes desprezo pela vida, Coriolano. Mas o mistério da vida é maior, muito maior que o mistério da morte.
-Amigo do povo, dizes-te. Mas estás só Temístocles. És um guerreiro, e a guerra é a solidão absoluta. A cada instante, a cada golpe, estás só perante a morte. Estás no meio de centúrias, de coortes, de legiões, mas só podes ter-te a ti próprio entre a multidão para defenderes a tua vida. Aí, nos campos de batalha, só ouves o grito da morte. Não tens tempo sequer para pensar nos filhos, na mãe, na mulher amada. A morte, os gritos da morte, rodeiam-te por todos os lados esvaziando o tempo. Saltas sobre montes de mortos para defenderes a tua vida: inútil porque só há morte por toda a eternidade. Matas para poderes viver, desde a tímida lebre ao mais forte guerreiro. Vê as cicatrizes que trago no meu corpo: estas cicatrizes a minha face exibe-as como bandeiras do meu triunfo sobre muitos mortos. Só esse triunfo dá sentido à vida porque só esse triunfo me colocará na eternidade da memória dos homens. Por centúrias e centúrias de anos os homens hão-de lembrar estas cicatrizes e dizer: em Roma houve um imortal.
A plebe que dizes amar só sabe a cor do pó. Ignora a cor do sangue triunfante. A vida da plebe é a vida das bestas, apenas pó sobre pó. A minha vida será sempre lume sobre lume, esse lume que é sangue a iluminar os nossos lares e me há-de iluminar para toda a eternidade. A plebe não tem lares nem lume. Medo de morrer, hoje? Não: terror de morrer para sempre.
Vê aquela cabeça espetada num ramo de árvore. Os olhos que não tiveram tempo para se fecharem à vista da morte só gritam de terror. O braço que jaz por terra, longe do corpo que lhe dava vida despede-se c0m terror. A perna decepada em que acabaste de tropeçar só parece mexer-se por terror. O rosto que acabou por morder o pó da morte e se volta para o silêncio do céu sem fundo só fala de terror. O cavalo que tem as tripas a sair-lhe do corpo e a custo resfolga, exala o último bafo de terror. O charco de sangue e lama em que acabaste de abandonar as tuas sandálias enterradas só tem o visco do terror. A espada, a lança, a flecha, o escudo, o elmo falam todos uma só língua, a língua do terror, a única língua que falam romanos ou gregos, etruscos ou gauleses.
Silêncio, vazio, ausência de luz, ausência de espaço, ausência de tempo, unidos o princípio e o fim, unidos o ponto e o infinito.
Não há horror. Há apenas terror. Esta é a verdade do mundo.